Hiroshima mon amour é um filme sobre o medo do esquecimento.
A protagonista, uma atriz francesa em visita ao Japão, está gravando um filme que ela descreve como “um filme sobre a paz” – e “que outro tipo de filme poderia ser gravado em Hiroshima?”, questiona ela. Na cidade onde caiu a primeira bomba nuclear que traria o fim da Segunda Guerra Mundial, seu filme clama pelo fim dos testes atômicos, para o que aconteceu ao Japão jamais se repita na história.
Ela própria é uma mulher emocionalmente mutilada pela guerra. Na cidade de Nevers, na França, quando ela tinha apenas 18 anos, ela viveu o amor de sua vida. Ironicamente, apenas um dia antes de a cidade ser desocupada pelos Aliados, seu antigo namorado foi morto numa praia, onde ela permaneceu ao seu lado até que o corpo esfriasse. Durante 14 anos, ela nunca contou esse fato a ninguém, nem mesmo ao marido que viria a ter depois, deixando que a memória a consumisse.
Então, quando ela está em Hiroshima, em 1959, ela se vê num relacionamento repentino (de cunho unicamente sexual, a princípio, a julgar pelos corpos entrelaçados que abrem o filme). O homem que está com ela, também casado, é um arquiteto japonês que estava no front de batalha na época em que a bomba nuclear foi lançada e, por isso, sobreviveu. Rapidamente, eles desenvolvem uma conexão que vai além do prazer carnal e a trama se desenrola durante os poucos encontros que eles têm até que ela parta definitivamente para Paris, de volta à sua vida normal. É daí que vem o conflito da narrativa.
Numa dessas conversas, depois de se esquivar várias vezes de contar ao amante o próprio passado, ela revela como tem medo de se esquecer do namorado que morreu em Nevers – de detalhes como as suas mãos. E ao evitar esquecer, lembra-se da dor rotineiramente, e sente que está traindo a memória daquele homem que perdeu para a guerra ao revelar ao japonês tudo o que aconteceu.
É esse medo de esquecer o namorado morto que funciona como um contraponto ao medo de esquecer uma tragédia como a bomba de Hiroshima. Ela diz, numa das conversas com seu amante, que ela viu o que aconteceu no Japão, ao que ele responde “Você não viu nada em Hiroshima”.
E ela relata, poeticamente:
“Quatro vezes no museu de Hiroshima. Eu vi as pessoas andando. Pessoas andando, perdidas em pensamento, entre as fotografias, as reconstruções, por falta de nada além disso. As fotografias. As fotografias, as reconstruções, por falta de nada além disso. As explicações, por falta de nada além disso. Quatro vezes no museu em Hiroshima. Eu vi as pessoas. Eu mesma, perdida em pensamentos, olhei para o metal arrasado. O metal retorcido. Metal tornado tão vulnerável quanto carne. Eu vi o bouquet de tampas de garrafa. Quem iria imaginar? Pele humana, suspensa, como se estivesse viva, sua agonia ainda fresca. Pedras. Pedras carbonizadas. Pedras estraçalhadas. Massas anônimas de cabelo de mulheres de Hiroshima que, ao acordar de manhã, descobriam que seu cabelo havia caído. Eu estava com calor na Praça da Paz. Dez mil graus na Praça da Paz. Eu sei. A temperatura do sol na Praça da Paz.”
Diversas vezes ela diz que se lembra da história, que sabe o que aconteceu. E ela segue narrando tudo que houve depois, especialmente o medo. O medo de dar a luz a monstros, o medo da infertilidade, o medo da chuva de cinzas, o medo da comida contaminada, as imagens dos corpos deformados de bebês nascidos de mulheres grávidas em Hiroshima, imagens de feridas abertas que ela compara a flores... Ela diz que está repleta de memórias, apenas para ser seguidas vezes negada pelo seu interlocutor. E a memória de uma tragédia como Hiroshima (assim como o Holocausto ou outras), afinal, nós nos perguntamos, pertence a quem? Todos nós fomos tão bombardeados com esses relatos e essas representações que parece que elas nos pertencem.
“Você não viu nada em Hiroshima”, repete o japonês, várias e várias vezes. Mas a reconstrução, argumenta a protagonista, é tão perfeita que faz com que os turistas chorem – “mas o que mais pode um turista fazer além de chorar?”
Num certo momento, o japonês pergunta a ela o que ela estava fazendo no dia em que a bomba caiu, e o que foi que ela sentiu. E ela responde: “O fim da guerra. Completamente, eu quero dizer. Assombro pelo fato de eles ousarem fazer isso, e assombro por eles terem sido bem-sucedidos. E o começo de um medo desconhecido também. E a indiferença. E também o medo da indiferença.”
Diante do que ocorreu em Hiroshima, uma tragédia que a protagonista compara à sua própria tragédia pessoal, como pode a memória ser preservada? Como pode ela não cair em esquecimento, em indiferença? Há, diante da tragédia, uma impossibilidade latente de se retratar o que, de fato, aconteceu. A representação tem limites e falar sobre certas coisas banaliza aquilo que é irretratável por natureza. A dor. O sofrimento.
Ao fim, não sabemos verdadeiramente se a protagonista deixa Hiroshima ou não. Sabemos que ela diz ao amante: “Hiroshima. Seu nome é Hiroshima”, ao que ele responde: “O seu nome é Nevers. Nevers na França.” Tão estigmatizados pela tragédia, são as suas memórias que moldam quem eles são. (G.P.)
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