quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Sobre Hiroshima mon amour

Hiroshima mon amour é um filme sobre o medo do esquecimento.

A protagonista, uma atriz francesa em visita ao Japão, está gravando um filme que ela descreve como “um filme sobre a paz” – e “que outro tipo de filme poderia ser gravado em Hiroshima?”, questiona ela. Na cidade onde caiu a primeira bomba nuclear que traria o fim da Segunda Guerra Mundial, seu filme clama pelo fim dos testes atômicos, para o que aconteceu ao Japão jamais se repita na história.

Ela própria é uma mulher emocionalmente mutilada pela guerra. Na cidade de Nevers, na França, quando ela tinha apenas 18 anos, ela viveu o amor de sua vida. Ironicamente, apenas um dia antes de a cidade ser desocupada pelos Aliados, seu antigo namorado foi morto numa praia, onde ela permaneceu ao seu lado até que o corpo esfriasse. Durante 14 anos, ela nunca contou esse fato a ninguém, nem mesmo ao marido que viria a ter depois, deixando que a memória a consumisse.

Então, quando ela está em Hiroshima, em 1959, ela se vê num relacionamento repentino (de cunho unicamente sexual, a princípio, a julgar pelos corpos entrelaçados que abrem o filme). O homem que está com ela, também casado, é um arquiteto japonês que estava no front de batalha na época em que a bomba nuclear foi lançada e, por isso, sobreviveu. Rapidamente, eles desenvolvem uma conexão que vai além do prazer carnal e a trama se desenrola durante os poucos encontros que eles têm até que ela parta definitivamente para Paris, de volta à sua vida normal. É daí que vem o conflito da narrativa.

Numa dessas conversas, depois de se esquivar várias vezes de contar ao amante o próprio passado, ela revela como tem medo de se esquecer do namorado que morreu em Nevers – de detalhes como as suas mãos. E ao evitar esquecer, lembra-se da dor rotineiramente, e sente que está traindo a memória daquele homem que perdeu para a guerra ao revelar ao japonês tudo o que aconteceu.

É esse medo de esquecer o namorado morto que funciona como um contraponto ao medo de esquecer uma tragédia como a bomba de Hiroshima. Ela diz, numa das conversas com seu amante, que ela viu o que aconteceu no Japão, ao que ele responde “Você não viu nada em Hiroshima”.

E ela relata, poeticamente:
“Quatro vezes no museu de Hiroshima. Eu vi as pessoas andando. Pessoas andando, perdidas em pensamento, entre as fotografias, as reconstruções, por falta de nada além disso. As fotografias. As fotografias, as reconstruções, por falta de nada além disso. As explicações, por falta de nada além disso. Quatro vezes no museu em Hiroshima. Eu vi as pessoas. Eu mesma, perdida em pensamentos, olhei para o metal arrasado. O metal retorcido. Metal tornado tão vulnerável quanto carne. Eu vi o bouquet de tampas de garrafa. Quem iria imaginar? Pele humana, suspensa, como se estivesse viva, sua agonia ainda fresca. Pedras. Pedras carbonizadas. Pedras estraçalhadas. Massas anônimas de cabelo de mulheres de Hiroshima que, ao acordar de manhã, descobriam que seu cabelo havia caído. Eu estava com calor na Praça da Paz. Dez mil graus na Praça da Paz. Eu sei. A temperatura do sol na Praça da Paz.”

Diversas vezes ela diz que se lembra da história, que sabe o que aconteceu. E ela segue narrando tudo que houve depois, especialmente o medo. O medo de dar a luz a monstros, o medo da infertilidade, o medo da chuva de cinzas, o medo da comida contaminada, as imagens dos corpos deformados de bebês nascidos de mulheres grávidas em Hiroshima, imagens de feridas abertas que ela compara a flores... Ela diz que está repleta de memórias, apenas para ser seguidas vezes negada pelo seu interlocutor. E a memória de uma tragédia como Hiroshima (assim como o Holocausto ou outras), afinal, nós nos perguntamos, pertence a quem? Todos nós fomos tão bombardeados com esses relatos e essas representações que parece que elas nos pertencem.

“Você não viu nada em Hiroshima”, repete o japonês, várias e várias vezes. Mas a reconstrução, argumenta a protagonista, é tão perfeita que faz com que os turistas chorem – “mas o que mais pode um turista fazer além de chorar?”

Num certo momento, o japonês pergunta a ela o que ela estava fazendo no dia em que a bomba caiu, e o que foi que ela sentiu. E ela responde: “O fim da guerra. Completamente, eu quero dizer. Assombro pelo fato de eles ousarem fazer isso, e assombro por eles terem sido bem-sucedidos. E o começo de um medo desconhecido também. E a indiferença. E também o medo da indiferença.”

Diante do que ocorreu em Hiroshima, uma tragédia que a protagonista compara à sua própria tragédia pessoal, como pode a memória ser preservada? Como pode ela não cair em esquecimento, em indiferença? Há, diante da tragédia, uma impossibilidade latente de se retratar o que, de fato, aconteceu. A representação tem limites e falar sobre certas coisas banaliza aquilo que é irretratável por natureza. A dor. O sofrimento.

Ao fim, não sabemos verdadeiramente se a protagonista deixa Hiroshima ou não. Sabemos que ela diz ao amante: “Hiroshima. Seu nome é Hiroshima”, ao que ele responde: “O seu nome é Nevers. Nevers na França.” Tão estigmatizados pela tragédia, são as suas memórias que moldam quem eles são. (G.P.)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Review: Interstellar

Interstellar (2014, roteiro dos irmãos Jonathan e Christopher Nolan, direção de Christopher Nolan) é um filme que vem sendo vendido como uma experiência épica sobre a sobrevivência da humanidade na última fronteira conhecida: o espaço. É uma obra que presta claras homenagens ao roteiro do clássico dos clássicos da ficção científica, 2001: Uma Odisseia no Espaço, tanto pela ciência contida na narrativa quanto pelas incursões metafísicas – e até por algumas “coincidências” como, por exemplo, a existência de um portal que leva ao outro lado da galáxia e que foi deixado, supostamente, por uma raça superior capaz de dobrar as dimensões. Dessa forma, apoiado sobre o ombro de gigantes – neste caso, Kubrick e Clarke –, não é de se espantar que Interstellar seja um filme ousado, dirigido por um homem ousado. Um homem que se mostra ligeiramente melhor (mas apenas ligeiramente) como diretor do que como roteirista.

Num futuro próximo, a humanidade está à beira da extinção. A população humana foi drasticamente reduzida e todos os recursos disponíveis são direcionados à cultura de vegetais, os quais são constantemente vitimados por uma praga que, não só acaba com a comida, mas também deposita cada vez mais nitrogênio na atmosfera. Com poucos recursos, a grande maioria das crianças é criada para cultivar a terra, uma vez que não há mais a necessidade de engenheiros, físicos ou matemáticos. Os avanços científicos foram interrompidos e a humanidade está estagnada numa tecnologia não muito diferente daquela que temos hoje. O protagonista, Cooper (interpretado por Matthew McConaughey), é um ex-piloto da NASA, a agência espacial dos Estados Unidos, inconformado com a falta do espírito intrépido de tempos passados. Assim, por uma série de coincidências sobrenaturais (que ele insiste em encarar sob a ótica do método científico), ele é levado a descobrir um plano da mesma agência para viajar até um buraco de minhoca (uma anomalia no tecido do espaço-tempo), que abre um caminho para outra galáxia, onde, supostamente, outros mundos representam uma segunda chance para a humanidade.

Para um povo que por vontade própria abandonou a exploração do espaço, esse é um plano que traz algumas imposições naturais. Primeiramente, as políticas: com uma verba reduzida, a NASA opera na clandestinidade enquanto o seu governo estimula a descrença no próprio programa espacial. É um cenário interessante, especialmente considerando que o governo estadunidense, no nosso mundo real, largou a corrida espacial para chineses e indianos (num universo mais provável seria uma bandeira vermelha a tremular em outro planeta, não a estadunidense e, em vez de astronautas falando inglês, teríamos astronautas falando mandarim), mas essa já é outra história. Porém, mais do que as imposições políticas, as mais críticas são as imposições práticas que uma viagem espacial envolve: as longas distâncias, o combustível limitado, o impacto psicológico na tripulação e, principalmente, o tempo.

É o tempo, especialmente a sua relatividade, o grande conflito deste filme. E o longa merece alguns créditos por expor exaustivamente e de forma muito funcional durante dois longos atos, toda a ciência por trás da narrativa sem deixar essa exposição muito óbvia. E estamos falando de ciência de verdade, diga-se de passagem (leia neste texto da revista Time uma lista das acuidades científicas de Interstellar). Na ficção científica e mesmo em outros gêneros, essa não é uma tarefa fácil, e fazê-lo sem perder a atenção do expectador é um esforço de roteiro que os irmãos Nolan desempenham muito bem. É surpreendente que em quase três horas de duração haja apenas uma única montage para mostrar o tempo passando (logo ao fim, quando a filha de Cooper, Murphy, está finalmente resolvendo a equação que possibilitará a emigração da humanidade). Esse é um dos grandes acertos técnicos, mas há inúmeros outros.

A escolha de uma paleta dessaturada, muito semelhante àquela empregada em Elysium (2013, leia a review aqui), é muito inteligente – provavelmente uma escolha do suíço Hoyte Van Hoytema, que assina também a fotografia de Her (2013). É uma escolha que diferencia esse longa de outros recentes que também se valem do tema espacial, como Avatar (2009) ou o blockbuster da Marvel Guardians of the Galaxy (2014), criando uma experiência estética um milhão de vezes mais sóbria. Essa sobriedade é amparada pela edição, de Lee Smith, que é muito funcional e permite que a audiência compreenda o que está acontecendo mesmo nos momentos mais tensos. A cena em que Cooper, sua companheira Brand (Anne Hathaway) e um dos robôs precisam acoplar a nave a um módulo espacial danificado, que gira livremente na órbita de um planeta longínquo, é um exemplo de um trabalho primoroso, cientificamente verossímil e muito bem editado. E a música, do onipresente Hans Zimmer, é um fenômeno por si só, que soa épica e repetitiva, criando a ambientação para uma jornada de décadas e décadas no vazio.

Diante de tamanha ambição e de tantos acertos técnicos, é uma pena que, depois de passar toda a narrativa construindo uma experiência intensa e embasada pelos fundamentos mais loucos (mas reais) da física quântica, o roteiro derrape logo no clímax, apresentando o amor como uma solução para um dilema que até então era científico. A cena em que finalmente entendemos que o fantasma é Cooper no futuro, mandando informações de dentro do buraco negro para sua filha na Terra, pode ser um belo pinch de roteiro, mas faz uso de um paradoxo da viagem temporal que é muito menos inventivo do que, por exemplo, a cena em que Cooper reencontra Murphy mais velha do que ele próprio.

A impressão que fica é a de que o roteiro tentou durante mais de duas horas construir um universo plausível de acordo com tudo o que a nossa ciência conhece, para, no fim demoli-la com um conceito frágil como o amor.

E foi essa a minha conclusão ao assistir ao filme pela primeira vez. Mas então eu fui vê-lo de novo acompanhando meu pai e, ao ler minha crítica original depois da nossa sessão, ele fez uma única observação: talvez eu mudasse a frase em que defino o amor como um conceito frágil se eu já tivesse tido um filho.

Simples assim.

Amor, segundo ele, talvez não seja a palavra adequada para descrever essa relação que estabelece uma ligação de continuidade entre dois indivíduos - e, sob uma perspectiva mais ampla, entre toda uma espécie. E aí eu me peguei pensando: no próprio filme essa é uma relação tratada de muitas formas: como um artifício evolutivo que serve simplesmente para fazer os indivíduos cuidarem de seus filhotes ou talvez como uma força propulsora psicológica (nem sempre com uma função social aparente, como o amor por alguém que já morreu) capaz de fazer alguém cruzar uma galáxia.

Mas, no fim, essa relação que chamei em meu texto de amor (algo que os próprios personagens o fazem durante o segundo ato), mas que ao fim Cooper chama de "bond" (ligação), talvez seja uma conexão capaz de criar significados entre dois indivíduos separados pelo próprio espaço-tempo, que é justamente o caso no longa de Nolan. Se você pensar bem, logo no começo o pai de Brand menciona que anomalias gravitacionais tinham sido identificadas em vários momentos e locais. Posteriormente, nós descobrimos que a gravidade é uma maneira de os seres humanos evoluídos se comunicarem com a Terra a partir do futuro, assim é plausível supor que esses seres de cinco dimensões vêm tentando enviar mensagens ao passado, mas não conseguiam pela falta de conexão profunda com alguém – e entender essa conexão simplesmente como amor é nada menos que um grave erro de tradução da palavra bond.

É plausível supor que qualquer um no futuro que tivesse acesso a um mecanismo de dobra do espaço-tempo poderia mover objetos na Terra do passado por meio da gravidade (como Cooper faz com os livros), mas falta a ligação com outro ser humano que permitirá criar associações a partir de um contexto comum para transmitir uma mensagem. Para qualquer outro ser humano, o relógio com os ponteiros se movendo significaria um simples defeito, mas para a filha de Cooper significava algo mais pelo simples fato de o ter ganhado de seu pai.

Assim, no fim das contas, essa ligação poderia ser menos sobrenatural do que poderíamos pensar, para ser a capacidade de criar significados entre dois indivíduos, mesmo que separados por milhares ou milhões de anos-luz. E é muito provável que, no fim das contas, seja essa a moral da história que Nolan nos contou com Interstellar. (G.P.)

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Palimpsesto

E as memórias avolumaram-se sob o deserto, até um dia em que restaram apenas camadas e mais camadas de areia sob um sol vermelho. Um sol moribundo. E sob a areia, lá embaixo, fósseis daquilo que um dia fomos, tão velhos que não havia mais ninguém para contar o tempo. (G.P.)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O paradoxo da modernidade tardia

Muitos autores, hoje em dia, falam sobre a fragmentação da realidade: sobre a inexistência de metanarrativas, sobre concepções múltiplas sobre o mundo, sobre a invalidade das verdades absolutas, sobre a simulação que sobrepuja o simulacro, sobre mundos dentro do mundo. Todos esses autores, na minha opinião, estão descrevendo a pós-modernidade. E essa pós-modernidade, por sua vez, diferencia-se da modernidade pela ausência de uma linha cronológica única (a História).

Para a modernidade, diferentes explicações sobre a existência vinham uma atrás da outra – e, cada vez que surge uma nova, a anterior é (e precisa ser) destruída por meio de um fenômeno chamado destruição criativa. Para a modernidade, o que é novo é melhor do que o que é antigo e, por isso, ganha automaticamente o direito de destruir o que veio antes, pelo bem do progresso, da História linear, do futuro.

A pós-modernidade (seja qual for sua descrição) refuta tudo isso. Não existe mais uma explicação única, uma só verdade, nem mesmo um mundo “real” que seja íntegro. Tudo é fragmentado. Porém, ao dizer que o mundo em que existia uma verdade única acabou, não está a própria pós-modernidade repetindo uma prática modernista de dizer que o que veio antes precisa acabar para que o novo possa existir? (G.P.)

quarta-feira, 12 de março de 2014

A briga da Criação

A área de Criação (que hoje eu chamo de produção editorial) compreende redação e arte. Conteúdo e forma. E essa, meus caros, é uma briga antiga. Neste breve artigo nós não vamos entrar no mérito filosófico e definir o que é conteúdo e o que é forma; não vamos citar caras como McLuhan e sua famosa expressão “O meio é a mensagem” (opa, já citei!). Aqui o que nós vamos fazer é manter o pé no chão e nos ater a dois aspectos que julgo muito importantes para quem trabalha na área de Criação e, consequentemente, toma decisões diárias em relação à produção de peças de comunicação. Vale qualquer peça (uma revista, um jornal, um report institucional, um newsletter, um livro, uma HQ...), pois esses são aspectos básicos da nossa labuta diária nesse mercado tão glamoroso (#sqn).

Por onde começar, então? Um caminho é entender que para o grande público, o conteúdo e a forma são muitas vezes indivisíveis – e isso é muito bom, pois é exatamente assim que tem de ser. Não cabe ao leitor de um livro, por exemplo, questionar a disposição do texto num grid, pois elementos textuais e gráficos precisam funcionar juntos, de modo que o leitor não se incomode. Em peças de comunicação do dia a dia, como o newsletter da sua organização, a forma precisa trabalhar junto com o conteúdo – afinal você não está pintando um quadro de Pollock. A escolha de fontes, tamanhos de títulos, recuos de parágrafos, balanço entre branco e preenchimento, imagens, grafismos e espaçamentos entre linhas não pode causar estranheza (a não ser, é claro, que o objetivo da peça seja justamente causar estranheza). A mesma coisa vale para o texto, pois você não está fazendo literatura. Redação e arte devem caminhar lado a lado, uma se apoiando sobre a outra de forma simbiótica e geralmente sóbria, seguindo um caminho comum que perpassa decisões conceituais e uma dose variável de gosto pessoal das pessoas envolvidas. Para quem trabalha com Criação, são esses os aspectos que julgo mais importantes para alcançar um nível desejável de qualidade editorial.

O conceito é a gênese de todo o resto > O conceito é o berço de qualquer peça de comunicação. O que queremos comunicar, com qual objetivo, a quem? Que tom queremos usar em nosso discurso?  Qual a mensagem central? Quais as mensagens secundárias, quais as informações de suporte? Quais valores devem estar implícitos em nossa fala? Tudo isso é conceito.

O conceito é a premissa do trabalho, de onde todo o resto vai partir. Isso significa que ele deve estar contido em todas as etapas da Criação. Uma revista de moda, por exemplo, terá um discurso e uma diagramação diferente de uma revista de finanças; um mesmo release, quando apresentado ao público interno de uma empresa, será diferente daquele publicado para investidores ou para o mercado em geral. Essas diferenças devem estar contidas no texto e na arte. Nem apenas em um, nem apenas no outro. Fazer a ponte entre os dois é certamente uma das tarefas de quem trabalha com Criação e as decisões sobre o que mudar num job em andamento, invariavelmente, devem passar por uma revisão conceitual. Se está adequado ao conceito, permanece. Se não está, pode ser lindo ou soar como poesia, mas em algum ponto alguém vai ter de ser chato e cortar.

Ok, parece fácil quando colocado dessa forma, mas o dia a dia é outra coisa. Nem sempre as coisas serão preto no branco; há uma dose bem grande de áreas cinzentas. Às vezes as coisas estão, sim, corretas conceitualmente, mas ainda assim o responsável pela Criação vai cortar. Por quê? Simplesmente por estilo. E gosto pessoal é uma coisa muito complicada.

E você, gosta de quê? > Entre o pessoal da redação, tem quem goste de períodos curtos e frases de efeito, tem quem goste de distribuir vírgulas a granel, tem quem goste de travessões, tem quem goste de apostos, tem quem goste de repetir palavras para criar um efeito coloquial (veja, por exemplo, quantas vezes eu repeti “tem quem goste”), tem quem goste do lead tradicional ou de aberturas invertidas à moda de jornalismo de revista... Tem muita gente que gosta de muita coisa. Algumas são inadequadas a determinadas peças, mas haverá momentos em que várias opções funcionam. E aí, qual escolher?

Já entre o pessoal de arte, tem gente que gosta de minimalismo e gente que gosta de rococó; tem gente que gosta de muito branco na página e gente que gosta de blocos pesados de texto; tem gente que justifica e gente que recua à esquerda. Quando se trabalha com um cliente específico, manuais de branding fornecem regras, mas mesmo essas regras são tênues e há muitas decisões que devem ser tomadas com base em estilo. A Gestalt, muitas vezes, dá um direcionamento, mas, ainda assim, restam decisões entre aspectos que não estão certos ou errados. Essas decisões recaem, mais uma vez, em estilo, e é nesse ponto que o cara da Criação vai ter de entrar dizendo coisas como: “Falta alguma coisa aqui... Falta um tchan!”, “E se a gente tirar isso e colocar aquilo?” – ou mesmo “Chega! Vamos mudar tudo!”, e alguém vai dizer (ou pensar, quando faltar a liberdade para dizer) “Porra, cara, então por que você não vem aqui e faz?!”.

Na verdade, o que esse profissional está fazendo é cuidar para que toda a peça tenha um estilo íntegro, independentemente de quem diagramou e de suas preferências pessoais naquele momento. Não é porque ele é chato – talvez ele até seja, mas ser chato não é condição sine qua non para o cargo. Também não é porque ele é mais importante que os colegas ou subordinados; o redator dá, sim, o tom dele às palavras que escolhe, e o diretor de arte também ao escolher uma ou outra imagem, definir um grid de duas ou três colunas, escolher essa ou aquela fonte... A Criação é geralmente um processo colaborativo, e é assim que tem de ser.

No fim do dia, contudo, tudo o que precisamos nos lembrar é que arrumar a casa é o trabalho do cara da Criação. Ele é, afinal, responsável pela harmonia das peças. Nem só pela arte, nem só pela redação. Por tudo – em itálico, porque eu gosto de itálico. (G.P.)