quinta-feira, 17 de maio de 2012

Sobre um punhado de areia

Eu havia desembarcado em Marrakech, a cidade vermelha do reino de Marrocos, dando os primeiros passos de uma viagem que me levaria até a região do maior deserto quente do planeta, do qual eu gostaria de ter um pedacinho. A vida é uma coleção de memórias, não é? Pois eu queria memórias de areia.

Localizado na porção noroeste da África, ao Sul do Estreito de Gibraltar, o Marrocos é uma monarquia constitucional governada pelo rei Mohammed VI, que dá nome à maior avenida do continente africano. Dessa avenida, o primeiro local memorável ao qual eu cheguei depois de desembarcar, eu podia avistar as montanhas da Cordilheira do Atlas, cujas ribanceiras eu teria de atravessar para chegar ao deserto. Os picos, cobertos de neve, eram fantasmas de inverno numa terra de verão.


Na cidade vermelha, há dois mundos que colidem – um efeito colateral da globalização que se repete em outros locais do planeta. A cidade nova, com restaurantes como McDonald’s, lojas como Louis Vuitton e casas noturnas como Pacha, é semelhante a muitas outras ao redor do mundo. Porém, a cidade velha, chamada de Medina é protegida da pós-modernidade por um muro de barro, e lá dentro o tempo parece ter parado.






Há cerca de mil anos, pessoas compram e vendem nos mercados de rua da Medina de Marrakech, chamados souks. Ali, cada vendedor é capaz de entender e falar palavras soltas em uma grande variedade de idiomas, resultado natural de séculos e séculos de negociação com povos diferentes. Além da habilidade linguística, eles também desenvolveram um dom para vender as coisas por mais do que elas valem, e a barganha, pouco natural para algumas culturas, foi elevada ao status de arte pelos comerciantes marroquinos.



Os souks de Marrakech são um paraíso para os amantes da sinestesia; estímulos visuais, sonoros e olfativos abundam em cada canto. Dentro dos mercados, a sensação é a de estar numa colmeia gigantesca: as lojas se aglomeram de uma forma orgânica e aparentemente caótica. Andando lá dentro durante algumas horas, no entanto, você começa a perceber que existe uma certa lógica, mas, mesmo assim, orientar-se continua muito difícil; a cada passo novas vielas aparecem e quando se entra em uma, fica difícil saber de onde você veio. Dentro dos souks, há uma geografia própria que não cabe ao forasteiro entender – e chega um momento, pelo menos para este forasteiro que vos escreve, em que coisas simples como o cadáver de um gato se tornam pontos de referência. Comer nos souks, é claro, é uma aventura à parte; a comida é ideal para quem gosta de sabores fortes e não se importa com a higiene, seguindo uma regra universal da comida de rua.

Em síntese, vamos colocar as coisas dessa forma: você pode sair dos souks de Marrakech, mas os souks jamais sairão de você – se não ficarem no seu coração e na sua memória, certamente ficarão no seu sistema imunológico.

Na praça central da Medina, saindo dos mercados, o que se vê é a torre da mesquita da Koutoubia, que, com seus 69 metros de altura, é o ponto mais alto da cidade. Assim como o rei determina que todas as casas da cidade vermelha sejam, de fato, vermelhas, ele também determina que todo e qualquer prédio deve ser mais baixo do que a Koutoubia, cuja torre emite diariamente os cinco chamados para a oração dos muçulmanos.



Esses chamados são provavelmente uma das únicas coisas que conseguem evocar o silêncio sobre os souks. Foi durante um desses chamados, em frente à mesquita, que eu vi um garotinho nativo correndo atrás de pombos. Eu já havia visto a mesma cena, é claro, em frente a igrejas católicas em outros locais do mundo. Parece-me que esta é uma constante em qualquer local do planeta: onde quer que haja pombos, garotinhos travessos os perseguirão inocentemente, porque crianças são crianças, independentemente da raça ou da religião. Mas aí elas crescem, vão à igreja, à mesquita e à escola e suas sociedades as ensinam a jogar bombas umas sobre as outras. Triste.


Com esses pensamentos na cabeça, chegou a hora de cruzar a cordilheira rumo ao sul do reino, a caminho da região leste do Marrocos, aproximando-se um pouco mais da fronteira com a Argélia. Nos vales entre as montanhas, a temperatura cai a cada metro percorrido na estrada que se desdobra como uma serpente. Lá embaixo, campos de trigo ondulam ao vento como grandes tapetes verdes. Aos poucos, contudo, a paisagem vai se tornando mais árida e tudo o que resta são pedras e areia.



No outro lado da cordilheira, a cidade fortificada de Aït Benhaddou surge na região árida como se brotasse das pedras. Patrimônio da UNESCO desde 1987, a cidade está localizada no caminho por onde passavam as caravanas vindas do Saara rumo a Marrakech. Ali, você já está na província de Ouarzazate, que foi cenário para filmes como Gladiador (2000) e o insuperável Babel (2006).



De Ourzazate, a viagem segue para Zagora, no vale do rio Draa, passando por um gigantesco palmeiral e chegando ao início da região do Saara. Ali, troquei o 4x4 por um camelo e começou a minha incursão através das dunas rumo ao acampamento do povo berbere em que eu dormiria aquela noite.



Os berberes são o grupo étnico natural da porção noroeste da África e a recepção em seu acampamento foi realizada com chá verde adoçado, seguindo a tradição marroquina. Depois do jantar – sopa de lentilha seguida de tajine de frango e legumes –, uma fogueira foi acesa e as canções berberes embalaram a noite. Aos poucos, o deserto se apagava. Enquanto as vozes e o som dos tambores sumiam, céu e areia começavam a se misturar. A lua ainda não havia nascido, e a escuridão começava a cair sobre o mundo.


Entre as dunas, é impossível discernir onde acaba a terra e começa o céu, você só sabe que está no meio e que não há nada que o separe das estrelas acima. A única coisa que você ouve é o vento. Mas chega uma hora em que até o vento para. E, então, quando faz silêncio total, você consegue verdadeiramente ouvir os seus próprios pensamentos.


E foi ali, ciente de que eu era o único ser humano no mundo todo que ouvia aquela voz em meio ao silêncio, que eu tirei um pedacinho do deserto e o guardei para mim. (G.P.)

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