quarta-feira, 31 de março de 2010

Odisseia em 5 minutos

A Odisseia, escrita oito séculos antes do nascimento de Cristo, é uma das obras mais importantes da literatura mundial. Trata-se de um poema épico escrito em 24 rapsódias, cuja narrativa influencia a literatura ocidental até hoje. Impressionante, não?

Se você não leu – ou não quer ler – a obra original, aí vai uma versão fast-food para ser apreciada em 5 minutos.

A Odisseia, de Homero, em 5 minutos

Fade in

Telêmaco é um cara que vive em Ítaca, uma ilha grega, e já está com o saco cheio de uma galera que vive fazendo a maior zona em sua casa. Chamados de pretendentes, eles são um bando de nobres que querem se casar com sua mãe, Penélope. Tudo porque o seu pai, Odisseu (também chamado de Ulisses) lutou na guerra de Tróia e, anos depois, ainda não voltou para casa. Pois é, quando o gato sai, os ratos fazem a festa. Num certo dia, os deuses decidem que está na hora de Odisseu voltar para casa, mas o problema é que ele está preso na ilha de Calipso, uma ninfa do mar. Então, Atena, a deusa da sabedoria, desce disfarçada à Ítaca, conversa com um pessoal e arruma para Telêmaco um barco e uma tripulação. Juntos, Atena e Telêmaco partem em busca de Odisseu. Eles param em Pilo, onde conseguem uns cavalos, e Telêmaco parte para Esparta, onde conhece Menelau, marido de Helena e veterano da guerra de Tróia. Menelau diz que ouviu um papo de que Odisseu está vivo numa ilha. Fica aí o mistério e, enquanto isso, os pretendentes se preparam para matar Telêmaco quando ele voltar para casa.

Mais uma vez, os deuses fazem uma reuniãozinha e decidem que Calipso deve libertar Odisseu. Então eles mandam Hermes, o jornalista/relações públicas dos deuses para conversar com a ninfa. Dessa forma, ela liberta Odisseu, que constrói uma jangada e sai navegando tranquilamente. Porém, Poseidon chega de repente e joga uma tempestade sobre Odisseu. Ino (também chamada de Leucotéia), uma entidade que ajuda o pessoal que está naufragando, transforma-se em gaivota e dá a Odisseu uma espécie de colete salva-vidas. Ele chega então ao país dos feácios.

Enquanto Odisseu dorme, Atena (ela de novo!) aparece nos sonhos de Nausícaa, a princesa dos feácios, e a manda lavar roupa no rio. Quando chega ao rio, Nausícaa encontra Odisseu, gosta dele e diz para ele ir bater um papo com o pai dela, pois os feácios sabem construir barcos muito bem. Mas eles são muito xenofóbicos, os safadinhos, e por isso Atena faz um feitiço maroto que o torna invisível. Odisseu conhece então o rei Alcino e, no dia seguinte, eles vão para a ágora (o centro da cidade) e falam sobre a guerra de Tróia. Bate uma emoção em Odisseu e ele chora, mas só Alcino percebe. Mais tarde, os feácios cantam sobre o Trojan Horse (o cavalo de madeira, não o vírus) e Odisseu chora de novo. O rei percebe e pensa “Opa, quem é esse cara?”, fica com a pulga atrás da orelha e vai falar com ele.

Odisseu diz quem é verdadeiramente e assim começam seus relatos aos feácios. Ele diz que, primeiramente, juntou um pessoal e foi criar confusão na terra dos cícones, uma tribo que vivia na cidade de Ismara. Lá, eles levaram uma bela e merecida porrada e foram embora. Chegam então à terra dos lotófagos, ou comedores de lótus, que é uma flor que faz com que aqueles que a comam percam a vontade de voltar para casa. Odisseu convence os companheiros a ir embora e eles chegam à terra dos ciclopes, os gigantes de um olho só, onde são capturados por Polifermo, um dos gigantes. Odisseu fura o olho de Polifermo e eles vão embora xingando e fazendo a maior bagunça, como era o costume.

Chegando em seguida à terra de Éolo, Odisseu ganha um saco onde estão guardados os ventos que poderiam atrapalhá-lo durante a viagem. Éolo diz a ele: “Não abra o saco, champs.” Odisseu obedece, mas os seus amigos o abrem mesmo assim, criando uma tempestade e fazendo com que eles voltem à terra de Éolo, que diz algo como: “Eu avisei que não era para abrir, campeão.” Eles continuam a viagem e se ferram mais ainda quando chegam à terra de uns caras que comem gente. Na sequência, eles chegam à ilha de Circe, uma deusa feiticeira, que dá comida enfeitiçada aos companheiros de Odisseu e os transforma em porcos. Nisso, surge Hermes de novo, que dá umas dicas a Odisseu para lidar com a deusa, que acaba querendo sexo. Papo vai, papo vem, eles ficam lá durante um ano, até que Circe manda Odisseu ao Inferno (também chamado de Hades) para conversar com Tirésias, o adivinho cego.

Chegando ao Inferno, Odisseu encontra uma galera morta, incluindo sua mãe Anticléia e seu companheiro Elpenor. Tirésias dá a ele duas dicas: primeiro, diz para que eles não comam as vacas de Hélio (wtf?!) e, depois, para que ele fique esperto com os pretendentes de Penélope, que são todos uns safados. Lá embaixo, ele encontra ainda Aquiles, Minos, Hércules e muitos outros famosos do mundo grego.

Mais uma vez, Odisseu volta para a casa de Circe, de quem recebe instruções para o resto da viagem, principalmente para ter cuidado com as sereias e parar de querer resolver tudo na pancadaria. Quando eles se encontram com as sereias, os amigos de Odisseu usam cera para tampar os ouvidos, mas Odisseu, todo safadão, quer ouvir o famoso canto, então ele é amarrado ao mastro do navio, de onde não poderia fugir e se atirar ao mar. Depois disso, eles chegam à ilha do Sol e comem as vacas de Hélio – sendo que não comê-las havia sido a única advertência útil que Tirésias deu a Odisseu. Resultado: Zeus manda um raio para que eles fiquem mais espertos. É depois disso que Odisseu vira prisioneiro de Calipso.

Assim termina a história que Odisseu estava contando aos feácios. O pessoal o leva então de volta para casa. Quando ele chega à Ítaca, Atena (disfarçada primeiro de pastor e depois de uma bela mulher) diz que ele deve procurar o porqueiro, que é um empregado fiel, mas disfarçado de mendigo e não com sua verdadeira aparência. Enquanto isso, Atena vai buscar Telêmaco (o filho dele, que saiu para procurá-lo, lembra?), que ainda está em Esparta. A deusa diz a Telêmaco para voltar para casa rápido, mas para ir à casa do porqueiro antes de qualquer coisa. Chegando lá, pai e filho se reencontram. Muito comovente.

Odisseu, ainda disfarçado de mendigo, volta à sua antiga casa. Estando disfarçado, ele diz à Penélope (sua mulher, que não sabe quem ele é) que viu Odisseu (ele mesmo) em Creta. Ela declara que irá propor um concurso entre os pretendentes para se casar com aquele que vencer. Neste meio tempo, uma criada lava os pés de Odisseu e o reconhece devido a uma antiga ferida.

Começa então o concurso para ver quem irá se casar com Penélope. A competição consiste em retesar um arco que pertencia a Odisseu e lançar uma flecha por entre os buracos de doze machados, uma prova consideravelmente difícil. O pessoal tenta, mas ninguém consegue retesar o arco. Odisseu, ainda como mendigo, consegue, é claro. Neste momento, uma música heróica estaria soando se isto fosse um filme. Chega o momento da pancadaria final, quando pai e filho lutam lado a lado. Os pretendentes morrem. Depois disso, Penélope reconhece Odisseu quando ele descreve a cama que ele mesmo havia feito, a qual está sustentada por um tronco de oliveira.

No fim, Atena coloca panos quentes para que ninguém mais brigue em Ítaca e é feito um juramento de paz para o futuro. Olha só que bonitinho!

Fade out

E essa é a Odisseia, de Homero, em cinco minutos. Por hoje é só. (G.P.)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Sobre fantasia, jornalismo e dinossauros


Quando eu era criança, era de dinossauros que eu realmente gostava. Eu sabia os nomes de muitos deles e costumava assistir a Jurassic Park repetidamente, às vezes escondido embaixo da cama durante as partes que eu considerava mais assustadoras. Naquela época, eu queria ser paleontólogo; a ideia de passar horas num deserto escavando ossadas enterradas há milhões de anos me parecia muito tentadora. Foram sobre dinossauros os primeiros livros que li e, desses, eu parti rumo à literatura fantástica. Desde então, não parei de ler e, consequentemente, escrever. Para mim, ambas as atividades fazem parte de um processo único e irrefreável.

Sendo um apreciador irremediável de fantasia, desde a realista à mais absurda possível, é esse o gênero que mais me dá prazer. Foi escrevendo esse gênero que tive meus dois primeiros livros publicados há quatro anos e, ainda hoje, é esse o gênero com o qual eu realmente gosto de lidar. Assim, é desnecessário dizer que considero a fantasia algo inebriante. Como certa vez já disse o meu autor favorito, Terry Pratchett, “Fantasia é como o álcool. Em excesso faz mal a você, mas um pouco toda semana torna o mundo um lugar melhor.” Ele é autor de uma épica série de mais de 30 livros, além de obras independentes, e sua fantasia é a mais absurda e inteligente com a qual eu me deparei até hoje. Mas, mais do que escrever fantasia, o que ele faz é uma releitura crítica do nosso mundo como nenhum outro escritor considerado “sério” é capaz de fazer. E, além disso, ele é jornalista.

Chegamos portanto ao Jornalismo, o ofício que, tal qual o autor que admiro, eu escolhi para mim. Não posso dizer que o escolhi porque amo ser repórter ou editor. Na verdade, o que eu amo mesmo é escrever, e não é só na fantasia que eu encontro personagens e temas. Até mesmo porque, corriqueiramente, a realidade pode se apresentar mais inverossímil do que aquilo que a maioria das pessoas considera fantasia. E, ao formatarmos essa realidade, a colocarmos em caixas e vendê-las ao mundo, também estamos criando uma parcela de fantasia. É uma questão semiótica: se eu disser para duas pessoas imaginarem uma flor, cada uma delas imaginará uma flor diferente. O mesmo vale para tijolos, por exemplo, e qualquer outro signo mundano. Simples assim, porque signos não são sólidos.

Ideias também não são sólidas – apesar de que algumas delas podem causar mais estragos do que, digamos, tijolos. Elas só precisam de uma partícula de inspiração para entrar em ebulição, e aí elas passam a querer escapar. E assim, o que eu faço é trazê-las à tona, como o paleontólogo que tira os ossos do seio da terra e revela o passado. No final das contas, eu estou fazendo o mesmo que aquele garotinho cheio de sonhos sobre dinossauros gostaria de fazer. (G.P.)

terça-feira, 16 de março de 2010

Sobre um horizonte compartilhado

O melhor comercial que vi até hoje foi o premiado “Feel the globe”, da Nokia, que rendeu ao seu criador, o japonês Hiroki Ono, o primeiro lugar em Cannes num concurso de filmes feitos com celular. Mais do que publicidade, eu considero este vídeo uma verdadeira obra de arte no que diz respeito à concisão, à estética e ao conteúdo.



Em português:

“Antigamente, as pessoas acreditavam que o mundo era plano/ Eu sempre senti o mesmo, até que você foi para o outro lado do mundo/ Agora, eu sei que nós compartilhamos o mesmo horizonte/ Meu pôr do Sol é o seu nascer do Sol”
(G.P.)

domingo, 14 de março de 2010

Sobre sacrifícios

Recentemente, li uma notícia sobre um jovem que teria vendido um rim no Egito com o intuito de pagar as despesas de seu casamento (veja aqui), o que me fez refletir brevemente sobre o motivo que leva um homem a sacrificar um órgão por dinheiro. Talvez o sonho do matrimônio, ou a preferência por alguns valores em detrimento de outros? Isso não importa muito para a minha breve discussão, pois todos têm o direito de sonhar com o que quiser e escolher o que vale a pena sacrificar ou não; e, sinceramente, essa conversa de “inversão de valores” já está um pouco passada. Também não tenho a menor intenção de criticar o capitalismo, porque (como eu já disse em outro post), certo e errado são conceitos muito fortes para se definir levianamente.

A questão aqui é o sacrifício. E aqui vai um exemplo pessoal: certa vez, na saída de um supermercado, deparei-me com uma senhora idosa carregando a clássica placa improvisada onde se lia “will work for food” (algo como “trabalho por comida”). Trata-se de uma cena deprimente, ainda mais por tratar-se de uma senhora em idade avançada. Porém, uma garota que se encontrava comigo na ocasião – mais uma vez, uma colega chinesa – colocou as coisas em perspectiva dizendo “Mas todos nós trabalhamos por comida”, o que não deixa de ser verdade. Ao ler a notícia sobre o rapaz egípcio, lembrei-me do pragmatismo do insight daquela garota. O que estou questionando aqui não é a dignidade do trabalho, mas a sua finalidade em última instância. Apesar de muitos discursos empapados de moral que pregam a edificação do caráter, o trabalho sempre irá lhe trazer alguma vantagem – geralmente financeira – ou, caso contrário, não haveria motivação para fazê-lo. E, ao sujeitar-se ao trabalho, você sacrifica o seu tempo.

No final, das contas, todos estão sacrificando alguma coisa para chegar a um ou outro resultado. Às vezes é uma preciosa parcela do tempo de nossas vidas, que poderia ser aproveitada para outra coisa, às vezes é um rim. (G.P.)

quinta-feira, 11 de março de 2010

Sobre hibridismo e cultura

O mundo já não é tão grande como costumava ser. Fato. Como escreveu Conrad Phillip Kottak, autor de Cultural Anthropology, “no século XV, a Europa estabeleceu contato regular com a Ásia, a África e eventualmente com o Novo Mundo (o Caribe e as Américas). A primeira viagem de Cristóvão Colombo da Espanha às Bahamas foi seguida por viagens adicionais. Essas jornadas abriram caminho para um maior intercâmbio de pessoas, recursos, doenças e ideias conforme o Antigo e o Novo Mundo uniam-se para sempre.” Com a posterior globalização, as pessoas passaram a se encontrar muito mais facilmente. Um voo do Brasil à China, por exemplo, leva cerca de 24 horas. E com isso, é claro, estamos contando apenas a facilidade da interação física. Através da internet, a comunicação é instantânea, o que faz com que o hibridismo cultural se torne muito mais fácil.

De acordo com o dicionário online Michaelis, híbrido é o “indivíduo que resulta do cruzamento de dois genitores de espécies, raças ou variedades diferentes.” Quando se cruza um leão com um tigre, por exemplo, cria-se um indivíduo híbrido chamado liger ou tigon (lion + tiger). Quando se cruza uma cultura com outra, cria-se algo como o exemplo abaixo, e a possibilidade de diversidade cresce exponencialmente.

San Francisco, nos Estados Unidos, tem a maior China Town fora da Ásia. Assim como São Paulo é o lugar mais japonês fora do Japão, San Francisco é o lugar mais chinês fora da China. Lá, pode-se observar exemplos de miscigenação cultural como este: uma cruz cristã no topo de um edifício de arquitetura tradicionalmente oriental.

Assim, num mundo fecundo à hibridização de culturas, outros exemplos vão surgindo:

A canção Sweet Lullaby, tradicionalmente uma manifestação étnica das Ilhas Salomão, foi gravada por um pesquisador na década de 70 e posteriormente utilizada pelo grupo musical francês chamado Deep Forest, que especializou-se num tipo de world music que consiste na mixagem de canções étnicas com música eletrônica. A canção provocou certa polêmica devido à questão dos direitos autorais, mas é um exemplo emblemático de hibridismo cultural.


A canção di yi bai ling yi ge da na (第一百零一个答案), da cantora chinesa Jiang Mei Qi (江美琪) tem clara influência do tango argentino. É algo sobre o que não poderia se pensar alguns séculos atrás.

E cultura híbrida é um termo que tem muita relação com o Brasil. Afinal, o que é a identidade brasileira senão uma total hibridização cultural?

Neste ponto, vale citar um exemplo pessoal. Durante a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016, eu estava estudando nos Estados Unidos. Ao encontrar-me diariamente com estudantes do mundo todo, percebia vez ou outra uma certa segregação natural. No refeitório, por exemplo, havia a mesa dos chineses, a mesa dos europeus, a mesa dos latinos, e por aí vai. Nós, brasileiros, por outro lado, estávamos cada dia em uma das mesas, transitando por todo o mapa-múndi sem muita dificuldade.

Sobre isso, nosso presidente discursou ao Comitê Olímpico. O presidente Lula já deu algumas escorregadas em seus discursos várias vezes, é verdade, mas devo dizer que ele se saiu muito bem desta vez. “Olhando para os cinco aros do círculo olímpico, vejo neles o meu país, um Brasil de homens e mulheres de todos os continentes. Americanos, europeus, africanos, asiáticos, todos orgulhosos de suas origens e mais orgulhosos de se sentirem brasileiros”, disse ele, e acrescentou: “Não só somos um povo misturado, mas um povo que gosta muito de ser misturado. É o que faz nossa identidade.”


E por quê? O que nós temos de diferente?

Como escreveu Darcy Ribeiro no livro O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil, o contingente imigratório brasileiro foi “composto, principalmente, por 1,7 milhão de imigrantes portugueses, que se vieram juntar aos povoadores dos primeiros séculos, tornados dominantes pela multiplicação operada através do caldeamento com índios e negros. Seguem-se os italianos, com 1,6 milhão; os espanhóis, com 700 mil; os alemães, com mais de 250 mil; os japoneses, com cerca de 230 mil e outros contingentes menores...” Em outras palavras, veio gente de todos os cantos. E mais gente continua vindo, enquanto nós continuamos indo.

O mundo já não é tão grande como costumava ser. Fato. (G.P.)

terça-feira, 9 de março de 2010

Haikai #1

As palavras gélidas
são ainda mais cortantes
que as espadas gélidas.

domingo, 7 de março de 2010

Sobre certo e errado

Estudando jornalismo, encontro de vez em quando pessoas que querem salvar o mundo. Mais do que isso, às vezes elas querem mudar o mundo; e muitas são ávidas para julgar o certo e o errado de uma maneira genérica, muitas vezes sem considerar o contexto dos acontecimentos. E contexto é uma coisa muito importante.

Eu me lembro de um fato interessante que presenciei em Pittsburg, uma cidadezinha no interior do Kansas, bem no meio dos Estados Unidos. Sobre Pittsburg, podemos dizer que, geograficamente, ela fica agradavelmente no meio do nada. Ainda assim, devido ao campus da Pittsburg State University estar lá localizado, ela é um microcosmo do mundo, cheia de estudantes de todos os continentes vivendo juntos. É um caldeirão cultural.

Num fim de semana ocioso em Pittsburg, fui conhecer uma igreja católica com um amigo brasileiro declaradamente pagão e uma garota chinesa cujo nome ocidental é Amy. Ela nunca havia entrado num templo religioso cristão antes e sua noção sobre o Cristianismo era bem restrita. Uma vez lá dentro, fomos recebidos cordialmente por um padre, que nos mostrou os aposentos da igreja e, devido à curiosidade de nossa colega chinesa, nos levou ao confessionário. Ela já havia visto confessionários antes em filmes exportados pelos Estados Unidos, mas não sabia exatamente qual era a sua função. Então, o padre explicou a ela os fundamentos da confissão católica, dizendo que a confissão servia para absolver a pessoa de seus pecados e tudo mais. “Mas isso quer dizer que uma pessoa pode fazer coisas erradas, pedir perdão e fazer as mesmas coisas de novo?”, perguntou ela ao padre. Ele confirmou que sim. “Então como elas vão aprender?”, rebateu ela, com genuína curiosidade. Entendendo o mundo com sua mentalidade não-Cristã, a absolvição concedida pela confissão católica deve soar bem incoerente, devo admitir. Ainda naquele mesmo dia, outro tópico que provocou certa dúvida em Amy foi a hóstia. “Quer dizer que vocês comem o seu Deus?”, questionou ela. E essa pode parecer uma pergunta banal, mas eu não acredito que seja. Muito pelo contrário, trata-se de uma questão de muito valor epistemológico, se você quer saber. Ora, por que é que nós fazemos o que nós fazemos?

Se pensarmos sobre isso sob a ótica de nossa sociedade, tem muita gente que acharia inconcebível não saber a respeito de Jesus, de nosso Deus com D maiúsculo e por aí vai, mas a maioria dessas pessoas não sabe absolutamente nada sobre as crenças do outro lado do mundo. Como é que alguém pode julgar o que é certo e o que é errado, e com base em quê? Nós fazemos o que fazemos da forma que fazemos porque foi assim que aprendemos. Em outros locais, outras pessoas aprenderam outras coisas com base em outras culturas. Que também estão certas.

Voltando àquelas pessoas que pretendem corrigir o mundo (mas na verdade só querem adequá-lo aos seus espelhos), eu não sei se o problema é ingenuidade, ignorância ou prepotência. Na verdade, eu acho que a maioria das pessoas tem dificuldade para entender que, para que uma coisa seja certa, as outras não precisam necessariamente ser erradas. E assim, elas saem por aí propondo suas Cruzadas particulares diárias, talvez sem perceber que certo e errado, em última instância, só dependem do lado em que você se encontra.

Um cara chamado Shakespeare já disse há um tempo que “nós somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos.” A questão é que, se nós mantivermos a mente aberta o suficiente, vamos perceber que não só nós somos feitos da mesma matéria dos sonhos, mas nossos sonhos – os nossos e os dos outros – também são feitos da mesma matéria. Eles podem ser diferentes, mas são equivalentes.

Trocando em miúdos, vamos tratar de abrir a cabeça. (G.P.)