Você teve uma discussão séria com alguém na noite passada, disse coisas que não deveria ter dito e foi dormir muito chateado. Por isso você não dormiu bem e, por isso, acordou alguns minutos depois do que de costume. Então você se levantou, lavou o rosto, tomou o seu café, apanhou suas chaves e, quando você estava saindo da garagem, um ônibus desgovernado passou a centímetros do seu carro antes de se chocar contra um poste. Caso ele o tivesse atingido, você não teria nenhuma chance de sobreviver, mas você escapou porque estava alguns minutos atrasado. Porque não dormiu bem. Porque discutiu com alguém. E aí você começa a se perguntar se aquela discussão não teria salvado a sua vida. Os acontecimentos da noite passada, organizados num equilíbrio perfeito, fizeram com que você sobrevivesse. Se você não tivesse discutido com aquela pessoa, suas tripas estariam espalhadas no asfalto, mas não; você está vivo.
Num outro dia, você acordou muito cedo porque tinha uma viagem internacional marcada para aquela manhã. Ao cruzar um semáforo, você acelerou no sinal amarelo em vez de parar e esperar pelo vermelho. Por isso, você chegou um minuto mais cedo ao aeroporto e, ao fazer o check-in, a atendente lhe ofereceu a possibilidade de mudar a passagem para um outro voo que decolaria trinta minutos antes. Uma ótima ideia, você pensou, e aceitou a oferta, sem saber que aquele avião específico sofreria uma pane elétrica e cairia sobre o mar logo após a decolagem. Antes do fim derradeiro, durante os breves momentos de lucidez entre a descompressão e o choque contra a água, você se pergunta se o fato de ter ultrapassado aquele sinal amarelo não teria destruído a sua vida. Os acontecimentos daquela manhã, organizados num equilíbrio perfeito, fizeram com que você morresse. Se você não tivesse acordado tão cedo, se você tivesse parado no semáforo e se a atendente não tivesse lhe oferecido a troca de passagem, você estaria num outro avião lendo um jornal e tomando uma taça de vinho branco, mas não; você está morto.
Pense por um momento sobre a complexa engenharia de possibilidades que foi necessária para que você viesse a estar exatamente onde está agora. Pense em tudo o que poderia ter acontecido se você mudasse um detalhe do seu passado. Apenas um detalhezinho, você poderia pensar, mas um detalhe que poderia iniciar toda uma reação em cadeia. Você acorda um minuto mais tarde, e está vivo; você acorda um minuto mais cedo, e está morto.
Algumas pessoas atribuem esses fluxos de acontecimentos a Deus, a deuses, ao karma ou simplesmente ao destino. Ou ao caos. Todas essas interpretações são belas, cada uma a sua maneira. Talvez haja um deus tomando conta de tudo isso, e talvez não haja, mas, de qualquer forma, tudo está relacionado, emaranhado para o bem, para o mal, ou para ambos. Essas questões fazem a gente pensar sobre como as coisas estão relacionadas umas às outras, por mais que, a princípio, não consigamos perceber toda a interdependência contida na existência. E não apenas na existência humana, mas no próprio balé do cosmo e na configuração da matéria que nos dá forma.
Estou longe de ser um especialista em física quântica, mas, vez ou outra, gosto de acompanhar o que os físicos andam fazendo por aí. Não tenho dados precisos, mas recentemente acompanhei o resultado de um experimento publicado, por meio do qual cientistas descobriram que alguns fótons (as partículas elementares da luz) têm “irmãos gêmeos”, os quais, apesar de não se encontrarem fisicamente interligados, têm a capacidade de reagir a estímulos sofridos pelo outro “irmão”. Assim, se você estimular um fóton, o outro sofrerá o mesmo estímulo, estando ele a alguns milímetros, quilômetros ou – teoricamente – do outro lado do universo. Relativizando (com muita liberdade poética), é o mesmo que pegar duas maçãs, deixar uma num lado de uma sala, levar a outra até o outro lado, mordê-la e perceber que a outra – aquele que ficou sozinha no outro lado – também foi mordida. Esse experimento com os fótons “irmãos” mostra uma interdependência entre as partículas que os físicos não conseguem explicar; definitivamente há algo que os une, mas ainda não é possível determinar o quê.
De uma maneira ou de outra, também estamos nós todos interconectados, seja pelas relações causais de ação e reação, ou por nossa constituição quântica. Na literatura budista, a dialética do Sutra do Diamante diz que “A não é A. Por isso, ele realmente é A.” Esse conceito se torna mais claro a partir da explicação do monge vietnamita Thich Nhat Hahn (em sua obra A essência dos ensinamentos de Buda, publicada no Brasil em 2001): “Uma flor não é uma flor. Ela é composta de elementos não-flor, como o sol, as nuvens, o tempo, o espaço, a terra, os minerais, os jardineiros etc. Uma verdadeira flor contém em si o universo inteiro. Se devolvermos qualquer destes elementos à sua origem, não existirá mais a flor. É por isso que podemos dizer com segurança: ‘Uma rosa não é uma rosa. Por isso, ela é uma autêntica rosa.’ Temos que eliminar o conceito de rosa se quisermos tocar a verdadeira rosa.”
Como diz o autor, para que uma flor seja uma for é preciso um equilíbrio perfeito de elementos supostamente alheios à flor – mas que na verdade não o são. Todos nós estamos inseridos nesse mesmo equilíbrio, de forma que, sob última análise, é impossível determinar o fim e o começo de qualquer coisa que seja. Você não é você. Você é todo o resto. Por isso, você é você. O todo está na unidade assim como a unidade está no todo. (G.P.)